O Papel dos Contos de Fadas na Construção do Imaginário Infantil
A sensibilidade e o conhecimento profundo do psiquismo humano na sua relação com os contos de fadas nos são revelados pela professora Isabel Maria de Carvalho Vieira nesta abordagem psicanalítica da questão. O artigo em tela tem o mérito de ampliar os conhecimentos dos professores, trazendo à tona questões que se encontram subjacentes a esse tipo de literatura
Desde os primórdios da humanidade, contar histórias é uma atividade privilegiada na transmissão de conhecimentos e valores humanos. Essa atividade tão simples, mas tão fundamental, pode se tornar um rotina banal ou representar um momento de excepcional importância na educação das crianças.
O estudo e a discussão em torno da adequação e da validade da narrativa de contos de fadas para crianças, especialmente para crianças pequenas, vem perdurando por gerações e gerações de professores, psicólogos, psicanalistas como também entre orientadores educacionais e pedagógicos. Os artistas que trabalham em espetáculos infantis também discutem a questão, e os pais sentem-se atordoados diante da diversidade de opiniões ouvidas e da amplitude das divergências apresentadas.
Há quem seja contra e quem seja a favor dos contos de fadas. Há quem considere encantadores os mitos e as lendas, como há quem os rejeite como mórbidos e perturbadores, mas atualmente não há mais quem discuta sua importância, sua atuação decisiva na formação e no desenvolvimento do psiquismo humano.
Aqueles que combatem os contos de fadas supõem que a violência das situações que neles se apresentam habitualmente, a personificação do bem e do mal em determinadas personagens, as soluções mágicas para os problemas mais complexos e toda a tensão emocional provocada pela narrativa desses contos vão proporcionar às crianças uma visão muito negativa da realidade, um contato desnecessário com o “lado negro” do homem, talvez até uma mobilização para as pequenas e as grandes maldades que podem ser feitas com outras pessoas. Muitos acreditam que para as crianças mais sensíveis a narrativa dos contos de fadas pode provocar sofrimentos e angústias, que poderão repercutir negativamente na sua vida futura, gerando muitos medos e inseguranças.
Estamos do lado daqueles que são a favor dos contos de fadas, que acreditam no valor e na verdade que se revelam nessas histórias arcaicas, na força e na coragem que podem surgir, exatamente, pelo impacto do encontro direto com a fraqueza, o desamparo, o medo, a necessidade de luta para alcançarmos nossos objetivos.
Os acontecimentos objetivos da vida da humanidade são a nossa história. Os acontecimentos subjetivos, as vivências interiores criaram as estórias. A história fala-nos dos acontecimentos conhecidos da realidade externa, do desenrolar dos fatos que foram sendo registrados nas comunidades e que explicam, em parte, como se efetivaram as realizações culturais dos grupos humanos, como se estabeleceram os grupos étnicos, como se definiram as nações. As estórias falam-nos da realidade interior na construção das nossas culturas, de como se constituíram as estruturas psicológicas das pessoas e dos grupos humanos.
As histórias de ficção, e muito especialmente as narrativas que vêm do folclore, os mitos, as lendas, os contos de fadas, se apresentam como a maneira mais significativa que a humanidade encontrou para expressar aquelas experiências que não encontram condições de se explicar no esquema lógico-formal da narrativa intencionalmente objetiva. A ficção objetiva os fatos e as verdades que não podem ser expressos pela razão, que não são identificados pela lógica. E é por isso que as histórias são tão temidas, e é também por isso que são tão importantes.
Os contos de fadas são narrativas simbólicas extremamente simples, primitivas, capazes de transmitir experiências subjetivas complexas e vivências emocionais delicadas às pessoas mais ingênuas e às crianças. As lendas e as histórias de fadas são incluídas hoje no acervo básico da literatura infantil porque as crianças se apossaram delas, enquanto o público mais sofisticado as considerava uma literatura de menor significado. Mas não há quem desconheça o quanto os grandes artistas, inclusive escritores de todos os tempos, buscaram e buscam inspiração constantemente nas manifestações mais primitivas da sua cultura, no folclore.
Há alguns aspectos bem interessantes a considerar quando pretendemos nos deter na reflexão e no estudo dos contos de fadas. Em primeiro lugar, o fato de que eles falam sempre de relacionamentos humanos primitivos e por isso exprimem sentimentos muito arcaicos do psiquismo humano. Mas porque arcaicos não deixam de ser atuais, talvez até extremamente atraentes e instigadores porque mostram o que se evita manifestar nas nossas sociedades contemporâneas: a raiva, a inveja, a mentira, também o amor, a fidelidade, a generosidade, com suas enormes conseqüências no viver humano. Nesse sentido, esses contos, como as lendas e os mitos, estão embebidos de princípios éticos universais. Outro aspecto extremamente importante a considerar é que os contos de fadas, sob múltiplas variações, apresentam sempre uma mesma estrutura e temática: falam da busca da totalidade psíquica, da plenitude do ser.
Todo conto de fadas gira em torno de um herói ou heroína que apresenta sua origem: pai, mãe, terra, cultura. O herói ou heroína vivem sempre dificuldades grandes e chegam a um momento de impasse em que alguma coisa extraordinária precisa acontecer para que haja uma solução satisfatória. Entram então em ação múltiplos poderes naturais e sobrenaturais ou mágicos, tanto do lado do bem como do lado do mal: inimigos terríveis, companheiros fiéis, personagens imbuídos de insegurança, de esperteza, de coragem, figuras transcendentes como fadas, anjos, demônios e dragões. A luta é sempre extremamente difícil, mas, ao final, faz-se a justiça, encontra-se a paz, a harmonia, vence o bom e o bem.
Todo conto de fadas constitui-se como uma “saga de herói”. No desenvolvimento da história, vai-se delineando a luta do herói que não se apresenta, inicialmente, como uma proposta em que todos os elementos da situação lhe estão naturalmente apresentados; ao contrário, no decurso da sua própria ação ele tem de descobrir os elementos que lhe faltam para compreender o processo em que está inserido e, assim, poder construir situações novas que possam vir a lhe favorecer na luta pelos seus objetivos. Nessa luta vão sempre aparecer dificuldades extraordinárias que exigirão muita disposição e astúcia para ser contornadas e vencidas – esta é a saga do herói, de cada um de nós, que, ao final, deveria ser culminada pela possibilidade de vencer todas as dificuldades. Nesse sentido, cada uma dessas estórias é um estímulo encorajador na luta da vida, em que se valorizam os princípios éticos na relação com o outro: o Mal é denunciado, e o personagem mau é castigado; o Bem é valorizado, e o personagem bom é premiado. A proposta e a realização básica são sempre de plena vitória final do bom e do Bem.
Carl Gustav Jung, o grande psiquiatra suíço que fundou a Escola de Psicologia Analítica, diz que “mitos e contos de fadas dão expressão a processos inconscientes, e sua narração provoca a revitalização desses processos, restabelecendo a conexão entre o consciente e o inconsciente”. Como Freud, ele entende que o sonho é uma forma de representação simbólica dos processos psíquicos individuais, e entende o mito, a lenda e o conto de fadas como representações simbólicas de processos psíquicos coletivos. A discussão sobre a pertinência da compreensão dos contos de fadas como expressão do Inconsciente Coletivo, no dizer de Jung, ou da Herança Arcaica, termo usado por Freud, daria um outro artigo, depoimento ou curso em que precisaríamos definir mais precisamente esses conceitos e referendá-los a estudos antropológicos, sociológicos, psicológicos.
O que nos importa aqui, neste depoimento, é referendar a importância dos contos de fadas no desenvolvimento intelectual e emocional das crianças. Todas as pessoas que trabalham com educação e saúde engendram esforços para proporcionar condições que favoreçam a integração psicológica. Se os contos de fada se apresentam com possibilidades de favorecer essa integração, não há como desconsiderá-los. Se a criança pode aprender, por meio deles, a identificar e a reconhecer, nos outros e em si mesma, pensamentos e sentimentos que ajudam ou atrapalham sua relação consigo mesmo e com os outros, se aprende a conviver com naturalidade com fortes elementos do inconsciente da humanidade e do seu próprio inconsciente, estaremos lhe oferecendo melhores condições para crescer e amadurecer por meio da narrativa e da reflexão dos contos de fadas. Essa proposta poderia e deveria ser um trabalho sistematizado e permanente, e as pessoas incumbidas de realizá-lo (professores, orientadores, psicólogos e artistas) precisariam ter, elas mesmas, um desenvolvimento pessoal e uma intimidade com seus próprios inconscientes, para poderem favorecer (ou, pelo menos, não atrapalhar) o encontro das crianças com seu mundo interno.
Isabel Maria de Carvalho Vieira
Psicanalista, Psicóloga, Professora de Literatura Infantil, Técnica de Educação
Revista Criança, nº 38 - Secretária de Educação Básica - MEC
Comentários
Postar um comentário