Mafalda, a pequena notável
Criada na Argentina, a
menina Mafalda enfrentou a ditadura militar de seu país para falar de censura,
feminismo, crises econômicas e política internacional. Virou um dos símbolos
dos anos 70
Mariana Della Barba
Sempre que pode, o
cartunista argentino Quino diz não se arrepender de ter parado de desenhar
Mafalda nove anos depois da primeira tirinha, quando seu personagem tinha um
número crescente de fãs. Entretanto, ele admite que se arrepende de algo que
fez nas primeiras tiras da personagem: ter criticado tão duramente a
presidência de Arturo Illia, que comandou a Argentina entre 1963 e 1966. E não
é que aquele governo tenha sido assim tão bom. Quino é que não sabia que,
depois do golpe militar que encerrou o mandato de Illia, a situação iria piorar
tanto.
Mafalda apareceu pela
primeira vez em 29 de setembro de 1964, na mais importante revista semanal
argentina da época, a Primeira Plana. No ano seguinte, as tiras passaram a ser
diárias, veiculadas no jornal El Mundo. Em 1967 Mafalda foi para a revista semanal
Siete Días Ilustrados, onde ficou até a última historieta, publicada no dia 25
junho de 1973. Suas 1 928 tiras já foram publicadas em mais de 20 idiomas,
incluindo russo, polonês e norueguês. Praticamente todas essas histórias, que
ainda saem em jornais ao redor do mundo, estão reunidas na hilária coletânea
Toda Mafalda.
Depois do golpe, as
histórias da personagem e de seus amigos revelam as diferentes fases da
ditadura argentina: a ineficácia do governo, a crise econômica, o endurecimento
do regime. Durante quatro governos militares, Mafalda não se intimidou e
permaneceu questionando a situação do país e fazendo perguntas bombásticas a
seus pais. Para acompanhar a trajetória desse difícil trecho da história
argentina, Toda Mafalda é uma verdadeira enciclopédia. Apesar de já ser
quarentona, a personagem continua muito atual quando o assunto é a insatisfação
diante da realidade social e política da América Latina.
Mudança de ares
Enquanto permaneceu no
comando da Argentina, Arturo Illia sofreu críticas de todos os lados. Era comum
que, dada sua lentidão em tomar decisões, ele fosse comparado a uma tartaruga –
justamente o animal de estimação que Quino deu a Mafalda e batizou de
“Burocracia”. “De um lado, Illia foi um presidente honesto e cauteloso, que evitou
transformações abruptas num momento em que nacional e internacionalmente elas
significariam riscos grandes”, afirma Júlio Pimentel Pinto, professor de
História da América Latina da Universidade de São Paulo. “De outro, teve uma
atuação inexpressiva na condução da economia e da política interna e externa.”
Apesar do cenário desanimador, os argentinos pelo menos estavam vivendo um
período de liberdade – algo muito valioso num país que tinha assistido a golpes
de Estado nas três décadas anteriores. A imprensa aproveitava para satirizar
Illia, coisa que Quino fazia muito bem.
Isso tudo tinha data para
acabar. Não tardou para que os militares tomassem o poder e resolvessem as
coisas à sua moda: o general Juan Carlos Onganía assumiu a presidência em 1966,
onde permaneceu até 1970. Seus colegas de farda ficariam no poder até as
eleições de 1973. A ascensão dos militares foi, como de costume, acompanhada
por repressão. Quino respondeu à nova realidade de várias formas. Uma das mais
geniais foi a última personagem criada por ele para a turma de Mafalda. Filha
de hippies e esquerdista, ela tem duas características que a tornam uma
metáfora explícita: é muito pequenina (tem menos da metade do tamanho de
Mafalda) e se chama Liberdade.
Crise sem fim
Durante os nove anos das
aventuras da Mafalda, foram várias as crises econômicas presenciadas pelos
argentinos e registradas por Quino. Em 1964, por exemplo, havia uma conjunção
de desvalorização constante da moeda e fraco desempenho agrícola. A conseqüente
recessão deixou desempregados quase um terço dos trabalhadores. Apesar de
alguns períodos mais prósperos (como em 1966, quando a taxa de crescimento
anual foi de 5,6%), o que predominou, como podemos ver em Toda Mafalda, foi a
crise generalizada e a estagnação. Quando tomou o poder, o general Onganía
lançou seu Plano de Estabilização e Desenvolvimento. Uma das principais medidas
foi facilitar a entrada de produtos estrangeiros no país, o que causou a
falência de centenas de empresas argentinas, incapazes de competir com os importados.
O personagem que Quino
melhor usa para falar de economia é Manolito, que trabalha na mercearia do pai,
freqüentada pela turma de Mafalda. Seu sonho é ter uma cadeia de supermercados
e ganhar muito, muito dinheiro – em busca desse objetivo, não é raro que ele
tente enganar seus clientes. Manolito, que adora o modo como a inflação faz
aumentar o preço das mercadorias que vende, vai muito mal na escola e não dá
valor a “superfluosidades” – tais como as canções dos Beatles.
Repressão em alta
A partir de 1966, a
Argentina viu sua liberdade ser dramaticamente reduzida. Estudantes viravam
alvos da polícia, jovens desapareciam de um dia para o outro, jornais eram
censurados – fenômenos bastante parecidos com o que ocorreu no Brasil e em
outros países latino-americanos no mesmo período. As medidas autoritárias e
impopulares do general Onganía, como o congelamento de salários, incomodavam
muito os trabalhadores. Com a justificativa de combater o “comunismo”, o
governo militar criou a Dipa (Direção de Investigação de Políticas
Antidemocráticas) para perseguir, encarcerar e torturar militantes políticos e
sindicais contrários ao governo. Onganía dissolveu partidos políticos e
interveio nas universidades com ações violentas.
Dois episódios marcaram o
aumento de violência do regime e foram, de maneira mais ou menos velada,
retratados por Quino em tiras presentes em Toda Mafalda. O primeiro, ocorrido
em 29 de julho de 1966, ficou conhecido como La Noche de Los Bastones Largos
(ou “a noite dos cacetetes compridos”). Professores, diretores e alunos da
Universidade de Buenos Aires foram arrancados das faculdades pela polícia, que
tinha a ordem de não economizar no uso de seus bastones.
Três anos depois, um
protesto semelhante aconteceu em Córdoba, com conseqüências ainda mais
desastrosas. O ápice da truculência policial e militar foi batizado de
Cordobazo e é considerado o equivalente argentino dos conflitos que marcaram o
mês de maio de 1968 na França. Em 29 de maio de 1969, a maior manifestação de
estudantes e trabalhadores já vista no país foi violentamente reprimida pelo
exército (pois a polícia já havia se rendido diante da força dos manifestantes)
e deixou dezenas de mortos e centenas de feridos. Marco na história recente da
Argentina, o Cordobazo acabou tendo um efeito multiplicador, incitando
manifestações país afora e enfraquecendo o regime militar.
Intragável censura
Mafalda odeia sopa. Todos os
(muitos) dias que sua mãe insiste em lhe servir a iguaria, a menina faz questão
de mostrar seu descontentamento. Esse foi um dos modos que Quino encontrou para
manifestar seu desgosto com relação à ditadura. A sopa, segundo o cartunista,
era “uma metáfora do autoritarismo militar”, assunto que não permitia
abordagens muito diretas. Durante a ditadura, os veículos de comunicação que
publicavam as tiras de Mafalda deixavam os limites bem claros: “Logo me
advertiram que havia temas, como sexo, militares e repressão, em que não se
podia tocar”, disse Quino em entrevista publicada no jornal argentino Clarín em
28 de julho de 2004.
Em Toda Mafalda, entretanto,
existem tirinhas que dão a impressão de que os censores argentinos não eram
assim tão rigorosos. Quino é bastante incisivo em certas alusões à tortura e à
falta de liberdades democráticas, por exemplo. No fim dos anos 60, cartuns com
esse conteúdo dificilmente poderiam ser publicados no Brasil – onde, após o Ato
Institucional nº 5, de 1968, toda a produção jornalística e cultural foi
ferozmente censurada. “Pode-se dizer que, no período que vai de 1968 até 1976,
a censura foi um pouco mais branda na Argentina do que aqui”, diz o historiador
Júlio Pimentel. “Entretanto, com o golpe militar argentino de 1976, a situação
por lá ficou realmente complicada.” Quino acabou dando sorte, já que, nessa
época, Mafalda não era mais publicada.
Mafalda se cala
Em 1973, Quino decidiu que
era hora de deixar de desenhar Mafalda. Na época, ao se justificar, o
cartunista disse que, diante do novo panorama argentino, a personagem teria de
presenciar coisas que não suportaria. O curioso é que Quino não se referia a
mais uma medida infeliz dos militares. A ditadura havia acabado e Héctor
Cámpora havia sido eleito presidente em março daquele ano. O problema é que ele
era um mero fantoche nas mãos de Juan Domingo Perón, líder populista que já
tinha governado a Argentina por duas vezes. No exílio havia quase 18 anos,
Perón tinha sido proibido pelos militares de se candidatar.
Em 20 de junho, Perón
retornou ao país, vindo da Espanha. Uma recepção havia sido armada no Aeroporto
de Ezeiza, nos arredores de Buenos Aires. Mas o local acabou sendo palco de um
sangrento confronto entre facções rivais de peronistas. O evento, que ficou
conhecido como Massacre de Ezeiza, deixou um saldo desconhecido de mortos e
feridos. O ex-presidente pousou em outro local, mas o estrago já estava feito,
revelando a grave crise no peronismo. Como Quino suspeitava, o retorno de Perón
(que em setembro, após a renúncia de Cámpora, voltaria a ser eleito presidente)
traria instabilidade à Argentina. Cinco dias depois do massacre, Mafalda
despediu-se de seus fãs. Quino só voltaria a desenhá-la raríssimas vezes, como
numa campanha do Unicef (o Fundo das Nações Unidas para a Infância) realizada
em 1977 para divulgar a Declaração dos Direitos das Crianças.
Fonte da reportagem:
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/mafalda-pequena-notavel-434734.shtml
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