A gota de água
Tu conheces, com certeza, uma lupa de aumentar, assim
como uma lente redonda de óculos que torna tudo cem vezes
maior do que é? Quando se pega nela e se a põe diante da vista e
se observa uma gota de água do lago, vêem-se milhares de animais
estranhos, como nunca se vêem na água, mas estão lá e isso
é real. Parece quase como um prato cheio de camarões. Saltam
uns entre os outros e são vorazes, arrancam braços e pernas,
pontas e bicos uns aos outros e assim estão alegres e contentes,
à sua maneira.
Pois era uma vez um velho homem a quem toda a gente conhecia
como Comichão-Coceira, porque era assim que se
chamava. Queria sempre tirar o maior proveito de qualquer
coisa, e quando não o conseguia, obtinha-o por feitiço.
Estava um dia sentado, segurando a sua lupa de aumentar
diante dos olhos, a observar uma gota de água que fora tirada de
uma valeta. Oh! Que comichões e coceiras aí havia! Todos os milhares
de animaizinhos pulavam e saltavam, puxavam uns pelos
outros e comiam-se uns aos outros.
– Mas isto é horrível! – disse o velho Comichão-Coceira. –
Não se consegue levá-los a viverem em paz e sossego e deixar a
cada um o que é seu! – E pensou, e pensou, mas não dava resultado,
e assim teve de fazer um feitiço. – Tenho de lhes dar cor
A Gota de Água
Vanddråben (1848) para que se tornem mais distinguíveis! – disse ele. Então, verteu
como que uma gota de vinho tinto na gota de água, mas que era
sangue de bruxa, do mais fino, a dois xelins. E assim se tornaram
todos os estranhos animais, rosados em todo o corpo. Parecia
uma cidade de selvagens nus.
– Que tens tu aí? – perguntou um outro feiticeiro velho que
não tinha nome, e era isso que o tornava fino.
Se conseguires adivinhar o quê – disse o Comichão-Coceira
–, dar-to-ei de presente. Mas não é fácil de descobrir, quando
não se sabe.
E o feiticeiro que não tinha nome olhou através da lupa de
aumentar. Parecia, verdadeiramente, como se fosse toda uma
cidade, onde os homens andavam sem roupa! Era horrível mas
ainda mais horrível, era ver como cada um empurrava e impelia o
outro, como se beliscavam e se agarravam, se mordiam uns aos
outros e se arrastavam uns aos outros. O que estava por baixo de
tudo tinha de ir para cima de tudo e o que estava acima de tudo
tinha de ir para baixo de tudo! Vede! Vede! A perna dele é maior do
que a minha! Baf! Fora com ela! Está ali um que tem uma borbulhinha
por detrás da orelha, uma borbulhinha inocente, mas tortura-o
e assim a borbulha vai atormentá-lo mais! E cortaram nele e
arrastaram-no e comeram-no por causa da borbulhinha. Está ali
um, sentado tão sossegado, como uma donzela, e que só desejava
paz e tranquilidade, mas a donzela teve de vir cá para fora e
puxaram por ela e rasgaram-na e comeram-na!
– É extraordinariamente divertido! – disse o feiticeiro.
– Sim, mas que pensas tu que é? – perguntou o Comichão-
-Coceira. – És capaz de descobrir?
– É bem de ver! – disse o outro. – É com certeza Copenhaga
ou outra grande cidade, são parecidas todas umas com as outras.
É uma grande cidade!
– É água do charco! – respondeu o Comichão-Coceira.
Hans Christian Andersen
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